sexta-feira, 26 de novembro de 2010

RIO: HERANÇA QUILOMBOLA (AINDA) CRIMINALIZADA

Até quando a herança quilombola, da imensa descendência bantu, permanecerá criminalizada pela sociedade brasileira, fiel às suas raízes coloniais? Paralelos entre narrativas do século XVII e do século XXI, mostram o quanto nossa civilização hegemônica é (ainda) anti-florestal. Apesar dos louváveis esforços midiáticos da Natura, do Bradesco e do príncipe Charles, o topônimo “mata” persiste em nosso vocabulário corrente como sinônimo de “Inferno Verde”, terra de ninguém, abrigo de mal-feitores, pretos fujões, “índios da terra”... e outros contraventores da “lei e da ordem”. Não venho, porém, fazer apologia da desordem. Também sou fã do Capitão Nascimento (além de achar o Wagner um super-gato soteropolitano!) e argumentei com amigos, desde o primeiro Tropa, refutando acusações de que o filme era “facista”, que finalmente surgira uma dialética na abordagem cinematográfica da nossa guerra urbana. Até o Tropa I, a polícia das nossas produções áudio-visuais era, via de regra, errada e corrupta; e a bandidagem uma mera consequência da injustiça social. Quero apenas ressaltar o meu cansaço com a estabilidade de certas premissas, e com a demora em certas mudanças na consciência nacional. Se agora a polícia está bem na foto da opinião pública, e encarna o “lado bom” dos discursos maniqueístas, porque a cultura quilombola bantu, que tem nas favelas do Rio seus maiores enclaves populacionais, é ainda "fora da lei"?

A analogia não é arbitrariedade minha, aprendi na Mangueira, em janeiro de 2000, durante a breve negociação que mantive com um senhor que se apresentou com irmão do “dono do Morro”, para obter permissão de subir com a equipe do Canal Brasil. Queríamos gravar cenas pro making of do GURUFIM, meu primeiro curta. Eu, pretinha e de cabeça raspada, meses após minha iniciação religiosa, me qualifiquei como diretora (“dona do filme”) e ele logo concordou, dizendo: “como tu é da cor, eu vou abrir o quilombo pra você.” Na época me emocionei e me senti, secretamente, cúmplice daquele “criminoso”, por sermos ambos Negros e herdeiros históricos da epopéia de Palmares. Mas hoje, mãe e avó, estou sem nenhuma paciência pra ver a sabedoria dos meus ancestrais continuar a ser tratada com tanta ignorância e preconceito. A imagem do “bando” de homens pretos fugindo pela estrada de terra, escondendo-se dos tiros entre a vegetação, me trouxe de imediato à mente uma fuga maciça de escravos, cuja “liberdade” dependia da intimidade com a floresta e as fronteiras da civilização. Quero desfazer essa associação. Espero que os traficantes sejam presos, que a juventude Negra tenha direito à cidadania plena, e que nossa cultura florestal popular seja, enfim, reconhecida. Quanto tempo ainda até integrarmos o legado positivo dessa tradição milenar, em que se destaca a inteligência coletiva que resultou no reflorestamento heterogêneo da Tijuca? Enquanto esse dia não chega, as semelhanças entre os trechos de cartas escravagistas de 350 anos atrás com citações da internet... são de cortar o coração... Julguem por si mesmos. Bjs, Dan.
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Os índios da terra logo se vão para o mato onde fazem abomináveis vivendas e ritos, juntando-se aos negros da Guiné, também fugidos, do que resultam mortes, furtos escandalosos e violências, motivo pelo qual não se pode atravessar o sertão comodamente de uma parte à outra, nem dilatarem-se as populações terra a dentro.” (Diogo de Menezes, Governador de Pernambuco, 1612) [em: Palmares a Guerra dos Escravos, por Décio de Freitas, ed Graal, 1982, Rio, pg 41]

O Rio presenciou ontem uma das maiores ações de ocupação policial em favelas, com o avanço da polícia pela Vila Cruzeiro, que faz parte do Complexo da Penha (...) onde vivem cerca de 400 mil pessoas. Foram usados 150 policiais do Bope, mais 200 da Polícia Civil e 30 fuzileiros navais. A Vila Cruzeiro foi alvo da operação porque (...) serviria de esconderijo para líderes de facções desalojados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A operação provocou fuga em massa de traficantes (...) rumo à área de mata conhecida como Inferno Verde e, na sequência, para as favelas do vizinho Complexo do Alemão. [em:www.destakjornal.com.br 26/10/2010]

Neste Palmares em que assistem os negros há um lugar, a que chamam, outeiro da Barriga, que em algum tempo habitaram com fortificações que fizeram de estacadas e fossos para defenderem melhor a grande povoação que aí tinham (...) Costumam os governadores, com grande zêlo do serviço de Sua Magestade e desejo de extinguir aqueles rebelados e fugitivos escravos, mandar todos os anos a mais gente que podem, acometerem os Palmares. Vão os soldados pagos e da ordenança a esta guerra (...)” (João Fernandes Vieira, Pernambuco, 1612) [em: Freitas, D., op cit, pg 111]

Numa ação ousada, que envolveu cerca de 600 homens e logística da Marinha do Brasil, a polícia do Rio deu uma resposta ao tráfico que entra para a história do Rio como uma das mais contundentes dos últimos anos. Com ela, cai por terra um velho mito, sempre lembrado desde o início das Unidades de Polícia Pacificadora, de que os grandes complexos de favelas da cidade, como a Penha e o Alemão, eram territórios do tráfico quase inexpugnáveis.(...) A fortaleza do narcotráfico revelou-se de papel, suscetível a uma operação que combinasse tropa treinada e surpresa tática. De símbolo do poder paralelo, que dela se apoderou por vários anos, a Vila Cruzeiro passa a troféu do estado (...) Passando sobre todas as barricadas que os traficantes instalaram nos acessos ao morro, (...) carros blindados sobre esteiras, pilotados por fuzileiros navais (...) avançaram por dentro das vielas, empurrando o que estivesse pela frente e obrigando os traficantes a uma fuga em massa pela mata. (...) Pelo menos 200. Agora, são as polícias Civil e Federal que fazem um cerco na região para capturar o bando. [em: Blog do Noblat 26/11/2010]

Os negros como conhecedores dos intrincados caminhos e escondidos lugares lhes armam ciladas, matando a muitos (...) ; vendo-se apertados retiram-se pelos Palmares adentro onde não podem ser seguidos, porque aquelas estradas só eles sabem e podem andar e dentro daquele labirinto de troncos têm retirada suas famílias, tanto que, como fica dito, têm aviso de que os buscam nossas armas.” (João Fernandes Vieira, Pernambuco, 1677) [em: Freitas, D., op cit., pg111]


A medida em que o cerco aumenta, é possível ver a agitação dos bandidos. Na estrada de terra, alguns homens armados seguem a pé. O reforço para a fuga chega em motos. Nesse momento, a correria e marcas no chão indicam que tiros são disparados na direção do bando. Logo atrás, uma caminhonete sai da favela lotada.(...) A correria continua. Um dos bandidos é baleado e cai. É socorrido por um comparsa. A todo o instante surgem mais traficantes armados. Contamos pelo menos 200 homens. Eles começam a cortar caminho pela mata. Ao ver essas imagens, duas perguntas: para onde esses bandidos estão indo? E a polícia, não estava preparada para essa fuga em massa? [em: www.g1.globo.com/jornal-nacional 25/11/2010]


Não podiam os comandantes das expedições contar com a vantagem tática da surpresa. Mil olhos de escravos observavam os preparativos e logo a notícia chegava aos Palmares, dando tempo aos chefes negros para organizarem a defesa, que geralmente consistia em evacuar povoaçãoes abrangidas nos planos do inimigo e mergulhar na selva. (...) A tática palmarina, chamada no tempo de “guerra do mato”, confundia e exasperava os comandantes das expedições. Não se pode deixar de compará-la à da rainha de Matamba na guerra contra a invasão portuguesa. Como aasinalou em 1867 o missionário capuchinho Cavazzi, aludindo às guerras congolesas: “A grande arte na condução da guerra, consiste em evitar o inimigo”. [em: Freitas, D., op cit, pg84/85]